A 35ª Mostra Internacional de Cinema, a mais importante exibição conjunta de filmes do Brasil, está em cartaz, a pleno vapor, em São Paulo.
Cinéfilos tiram férias para ter mais tempo e chegam a ver sete filmes por dia
Uma radiografia detalhada do cinema contemporâneo mundial, com pistas sobre as tendências e caminhos a serem seguidos pelos diretores e roteiristas no futuro próximo.
A Mostra, que em 2010 teve 250 mil ingressos registrados nas salas, é também a passarela principal do paraíso para uma figura típica, emblemática e inevitável no ambiente cinematográfico: a do tarado absoluto por cinema.
Um ser mais conhecido no meio por um rótulo elegante, cinéfilo, termo adaptado do francês cinéphile para definir o amante do cinema como arte ou forma de lazer, um ser interessado nas realizações e nos rumos desta arte.
Se o leitor considera cinema uma diversão eventual como outra qualquer, deve ter visto no máximo dez por cento da quantidade de filmes acompanhado por um cinéfilo com idade próxima à sua.
Isso significa que se você pedir uma lista com dez indicações de filme para a fera, vai gostar de três ou quatro no máximo. Ou seja: dos que você acharia bom de qualquer jeito, ainda que ele não os indicasse.
Os cinéfilos, essa legião de loucos por uma telona iluminada ao fundo de uma sala escura, esperam as edições anuais da Mostra com a ansiedade de um folião de subúrbio para desfilar na sua escola de samba preferida.
A coisa é mais ou menos assim: quando cai o último letreiro da última sessão do último filme da mostra de um ano, faltam onze meses e duas semanas para o início da maratona do ano seguinte.
Tirar férias no mês da mostra é comum entre os membros da tribo. Permite que eles acompanhem em paz três, quatro, cinco, seis, até sete filmes por dia.
Não é raro encontrar quem tenha visto entre 50 e 70 filmes em uma edição da mostra. Há cascas grossas que acompanham 90. Haja resistência a assento...
Na entrada das salas de exibição, é fácil encontrar cinéfilos mais parecidos com turistas estrangeiros de primeira viagem. Caneta e roteiro nas mãos, eles consultam e rabiscam listas para separar as obras vistas das ainda não vistas entre as eleitas daquele ano.
Outra cena típica é a do apressado esbaforido nas entradas e saídas das sessões.
Com a agenda invariavelmente apertada, a turma de profissas acaba de ver um filme e sai em disparada rumo ao próximo, marcado para começar em 25, 30 ou 40 minutos. Em outro cinema. Entre uma e outra, o trânsito de São Paulo. Apenas... Já viu.
Se por algum problema houver atraso na exibição de um filme e a sessão seguinte não for na mesma sala de exibição da anterior, pronto: o caos e o desespero estão devidamente estabelecidos.
Não há cinéfilo que não tenha feito ao menos uma loucura por cinema.
Em 1999, o jornalista Chico Fireman encarou 40 horas de ônibus de Maceió, onde morava, para acompanhar a que viria a ser a primeira das mais de dez mostras de seu farto currículo atual.
O especialista em comércio internacional Michel Simões, assistiu a sete filmes da Mostra no último sábado (22)
Foto: Eduardo Marini/R7
Naquele ano, o competente Chico veio, viu 60 filmes, venceu, sentiu-se o homem mais feliz do mundo e, como na carruagem que vira abóbora do clássico Cinderela, encarou, no seu Bye-bye Brasil particular, outras 40 horas de busão na volta para casa. Tempos depois, decidiu morar definitivamente em São Paulo.
Fireman assistiu a mais de 600 filmes só em edições da Mostra. Chegou a ver entre 60 e 65 obras em um único ano, mas neste 2011, “um pouco mais calmo”, diz querer acompanhar entre 40 e 45. Aposte: ele verá mais.
Entre essas centenas de títulos vistos na mostra estão obras inusitadas como A Arca Russa, do diretor (russo) Aleksandr Sokurov. O trabalho foi filmado em apenas um dia (23 de dezembro de 2001), num único plano sequência de 96 minutos, em 33 salas do museu Hermitage, retratando três séculos de história da Rússia.
E também o bonito documentário dramático Dez, do diretor iraniano Abbas Kiarostami, com 84 minutos de imagens dentro do carro de uma motorista de táxi em Teerã, a capital do Irã.
A propósito, cinéfilo que é cinéfilo, ao contrário do mortal comum, sempre – sempre - sabe coisas como a diferença de um plano sequência para um plano americano e dos dois para um travelling. Não só sabe como incorpora tudo isso ao vocabulário do dia a dia como se aquilo fosse simples como média e pão com manteiga.
É por isso que quando um cinéfilo descobre outro cinéfilo numa roda de papo em que o assunto não é cinema, a dupla, claro, abandona o tema principal e termina a noite na paralela. E, claro, tome plano sequência, plano americano, travelling...
A atitude mais, digamos assim, cinéfila de Fireman até hoje foi acompanhar o épico em preto e branco de sete horas e meia (você entendeu bem: sete horas e meia) Sátátangó, do húngaro Béla Tarr, exibido por aqui na mostra independente Indie. Com dois intervalos de 25 minutos. Fireman detalha:
- A sessão começou às nove da noite, com umas 120 pessoas. Cerca de 50 abandonaram nos dois intervalos. Saímos do cinema tipo 5h30 da manhã do outro dia. O mais curioso é que todo esse tempo não foi usado numa história ampla, mas na realidade de uma pequena vila húngara decadente às vésperas do final do comunismo, ou seja, um corte bem específico.
E por que ver tanto filme em apenas 14 dias se grande parte deles entrará em cartaz nas próximas semanas ou meses? Há algum culto ao ego, um prazer de ser o pioneiro?
Fireman responde:
- Pode ter gente que se sinta assim, mas no meu caso não é nada disso. Alguns filmes eu escolho porque eles só serão exibidos na mostra; não entrarão em cartaz no Brasil. E mesmo os que farão temporada, eu os acompanho simplesmente porque gosto de cinema e estou ansioso para ver. É só isso.
O especialista em comércio internacional Michel Simões, 32 anos, concorda:
- Comigo não rola essa de eu vi, você não viu. É apenas a chance de ver logo. Como a gente gosta muito do negócio, a vontade de conhecer na primeira oportunidade é grande.
O culto Simões está em sua oitava Mostra Internacional.
Entre sexta-feira (21) e domingo (23), teve a luz do dia como companheira por pouquíssimo tempo.
Isso porque, no sábado (22), começou a jornada ainda de manhã para assistir a sete sessões. Diz que pretende fechar este ano com 45 filmes, mas, a exemplo de Fireman, não convence. Tudo indica que romperá a barreira. E isso porque, ao contrário dos outros anos, não conseguiu tirar neste período do ano para ficar lépido e fagueiro à disposição de sua paixão.
Simões se recorda de heroicas defesas da causa como assistir a um filme paraguaio à meia-noite de um sábado. Sentado no chão. Isso é bem cinéfilo.
E de ter testemunhado episódios impagáveis como a da menina que tascou uma garrafa de água mineral na cabeça do camarada que tagarelava durante o auge da tensão existencial e estética do cabeça movie que todos eles acompanhavam. Isso é muito cinéfilo.
Ou do dia em que levaram a fita errada para o cinema. Os dois filmes tinham a palavra “deserto” no título. O encarregado pegou o errado. Cerca de 20 minutos depois do início da projeção, com vários estranhamentos do público, o funcionário interrompeu a sessão, admitiu o erro e iniciou uma nova jornada. Isso é muito, muito cinéfilo.
E também a do técnico que colocou a parte final do filme de cabeça para baixo e a turma só começou a reclamar uns dez minutos depois. Isso é irresistível e arrebatadoramente cinéfilo.
Assim como o enófilo, o amante de vinho, nunca acha uma taça apenas gostosa, o cinéfilo sofre para considerar um filme só bom ou só ruim. É quase sempre fundamental explicar porque a obra é intensa, minimalista ou tomada por conflitos.
O melhor filme da vida de Chico Fireman é Aurora, clássico de 1927, um drama com pitadas de romance e suspense dirigido nos Estados Unidos pelo alemão F. W. Murnau.
O melhor filme da vida de Michel Simões é bem mais novo, Magnólia, dirigido pelo americano Paul Thomas Anderson nos Estados Unidos em 1999, com Tom Cruise no elenco.
De vez em quando, eles também gostam de um bom Tubarão, ET, de um desenho de animação ou de um popcorn movie (filme pipoca) feito com competência.
Mas só de vez em quando.
A propósito:
Plano sequência é aquele que registra tudo em uma única filmagem, sem cortes.
Plano americano é quando um sujeito filma o corpo do outro do joelho para cima.
E, finalmente, no travelling a câmera é movida num carrinho ao lado da ação, na paralela, para pegar a ação na mesma distância em todo o seu movimento.
Como eu sei? Um deles me ensinou, claro...
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