quinta-feira, 20 de setembro de 2012

A arte em terreno árido

Halder Gomes está em Brasília para apresentar seu novo longa, "Cine Holiúdy". Ele falou ao Caderno 3 sobre os percalços da produção local

De passagem pelo Festival de Cinema de Brasília, para apresentar seu novo filme, o diretor Halder Gomes critica políticas de incentivo do Estado e Município. Para o cearense, os editais carecem de objetivos concretos FOTO: JUNIOR ARAGÃO/ DIVULGAÇÃO
Halder, a partir da sua experiência como realizador, contando histórias cearenses e também dirigindo produções fora do País, o Ceará é um estado com vocação para o cinema?
Bom, o panorama cearense hoje é muito rico do ponto de vista de criação. Criação independente e sacrificada, eu diria. O Ceará tem um punhado de histórias para serem contadas; talentos para dirigir, escrever, ótimos profissionais, muitas locações, infraestrutura hoteleira e viária, bom posicionamento geográfico, uma boa luz... - e isso são grandes vantagens que muitos lugares não tem. Mas, infelizmente, tudo isso é em vão se não existe uma vontade política.

Nesse sentido, ficamos para trás?
Nesse sentido, nos somos completamente míopes. As nossas autoridades políticas ainda não entenderam a importância estratégica do cinema: como preservação da cultura, registro, retratação de uma época. O cinema é hoje uma obra eterna: um filme atual vai ser visto por gerações. E muitos lugares já compreenderam a importância disso e estão investindo, como nosso vizinho Pernambuco. Não é preciso ir muito longe, eles estão aí, fazendo história nesta área.

Mas quando você diz "nós somos míopes", de algum modo, inclui a iniciativa privada ou apenas o governo?
Para ser sincero, eu nem envolvo a iniciativa privada no Brasil, porque eles sequer têm a possibilidade do risco. Você tenta lançar um filme em salas de cinema, chama uma empresa pra investir alto nisso e aí vem um blockbuster e toma todas as salas. Como isso pode ser rentável para eles? Então, é bem difícil colocar o cinema como um produto diretamente rentável, principalmente em um país que não tem essa cultura. Nos EUA, o roteiro é tudo. Se ele é bom, a iniciativa privada investe, mas aí é um panorama completamente diferente e, mesmo lá, conta-se muito com o dinheiro público, sabia? Para que o cinema exista na maior parte do mundo, é necessária essa parceria com a política e o Ceará fica atrás de muitos estados brasileiros.

Como esse investimento pode ser bom para o artista e para o governo?
O próprio edital de cinema de Pernambuco está aí para provar isso. Olha o tamanho do retorno que isso traz: três filmes pernambucanos disputam a mostra competitiva do festival mais tradicional do País. E só elogios ao governo de Pernambuco por onde você passa, entende? Vou ser sincero, um filme estar na mostra de Brasília ou na mostra do Rio de Janeiro traz muito mais visibilidade nacional do que a Jennifer Lopez no Ceará. Pare pra pensar: a quem interessa o show dela em Fortaleza? Apenas aos fortalezenses, porque não há nenhuma novidade nisso. O show dela é o mesmo em qualquer lugar do mundo. Isso está longe de ser intercâmbio cultural. Intercâmbio foi o que fizemos em "Área Q": investimento de fora vindo para o Ceará, gente nossa indo trabalhar em Los Angeles, gente deles vindo trabalhar aqui. Contando uma história nossa, numa locação nossa. Isso sim é intercâmbio. Quer dizer, me diz se não é melhor investir no que temos do que trazer coisas mirabolantes e caríssimas que não deixam legado nenhum?

Você tem uma opinião muito assertiva sobre editais. Explique melhor sua ideia de reduzir a quantidade de vencedores de um edital e garantir um valor maior para cada um deles.
É assim: se você distribuir para três um prêmio de R$ 500 mil, como eu já vi, você vai não ter três filmes, entende? Depende da política que você quer adotar, se você quer fazer caridade, passar a mão na cabeça e dar um tantinho pra cada, isso na verdade vai estimular a tentativa de filmes e não a sua realização. Pode ser que nenhum desses filmes aconteça, porque não vão conseguir captar o resto do dinheiro e aí o prazo expira, dá problema no documento... Isso que a gente conhece. Se você estabelece um valor que seja possível para fazer um bom filme, eu acho mais viável. Melhor investir R$ 1 milhão em um só filme do que sair atirando pra todo lado. Quem lança um edital tem que saber o que quer. O MinC, por exemplo, sabe muito bem o que ele quer. O edital de longas de ficção de baixo orçamento, o BO, sede R$ 1,2 milhão. Ele sabe que esse edital fomenta a produção autoral e criativa do Brasil, porque excelentes filmes brasileiros saíram daí: "Elvis e Madona" é um filmaço; "Amarelo Manga"... O Petrus Cariry acabou de levar mais um...

Então é um valor interessante para o fechamento integral de um filme?
Um valor regular. Não é muito, mas você sabe que vai ser disputado por pessoas capacitadas. O MinC já estabeleceu isso. É um investimento ainda baixo, mas os produtos são extremamente competitivos. É importante a autoralidade dos filmes. E esses filmes circulam muito bem. Tudo isso consolidou esse edital. O nosso ainda não sabe o que quer da vida. Digo isso com experiência própria. Tentei três vezes o edital de cinema e vídeo da Secretária da Cultura (Secult) do Estado, quatro vezes o Mecenas: foram sete tentativas em cinco anos. Na sétima, aprovaram R$ 100 mil para eu captar. No BO, eu fui o primeiro lugar do País e foi unânime. Foi a primeira vez que um projeto foi aprovado com unanimidade. E eu levo cinco anos no Ceará para autorizar R$100 mil?! Quer dizer, alguma coisa está errada aí. O filme vai passar aqui em Brasília, no Rio, já está em outros festivais, tem distribuição assegurada pro ano que vem, sabe? Então era a hora de o Estado chegar e propor: "Poxa, deixa eu entrar nessa!". Mas não. Tudo o que você escuta é "não" - pra tudo. Aí você perde o estímulo, perde profissionais, muitos deles vão embora. Aí o próprio Estado investe em formação e não tem retorno disso, porque seus profissionais vão embora.

Você citou o filão espiritualista. Não acha que, além do investimento público, falta ao Ceará produtoras de peso? Quer dizer, em pouco tempo a Estação Luz, por exemplo, investindo em seu recorte temático, conseguiu mobilizar a iniciativa privada e ter sucesso de público.
Na verdade, isso é um posicionamento de mercado. É como você falou, ela investiu em um recorte. O cinema tem seus nichos, assim como a literatura, por exemplo. E justamente a venda dos livros espiritualistas e o caráter de best-seller que eles adquiriram se tornaram um indicativo de que poderia existir público para isso nos cinemas. E essa foi a aposta. Foi um olhar empresarial capaz de identificar uma oportunidade. Além, lógico de tantas outras motivações tão mais importantes do que essa. "E a vida continua..." abriu com 70 mil espectadores neste fim de semana. É um número espetacular nesse segmento. E eu acredito que existam outros gêneros a serem explorados nesse sentido. É o que eu estou buscando com "Cine Holliúdy". Acredito que exista um gênero da nordestinidade que não é abastecido com produtos que o identifiquem. Hoje, fora do Nordeste, existem mais de 30 milhões de nordestinos. Isso é quase a população do Canadá. Então, estou apostando que esse nicho existe e deseja se ver nas telas. E mais do que isso: é uma história que eu quero muito contar. É um filme que fala com verdade para os cearenses.

Você tem visto de filmes locais?
O interessante do cinema cearense para mim é o fato de termos todas as gerações produzindo. E, aliás, trazendo milhões de reais para o Ceará. Por exemplo, em cinco anos, trouxemos seis prêmios do BO: eu, Joe Pimentel ("Homens com cheiro de flor"), Petrus Cariry ("O Grão"), Roberta Marques ("Rânia"), Alexandre Veras ("Linz"), Wolney Oliveira ("Os Últimos Cangaceiros")... Isso representa mais de R$ 7 milhões para a produção local. E um parêntese: olha só como tudo é feito com o dinheiro de fora! E, voltando para a nossa diversidade de produção, é interessante também a diversidade de temas. Porque no Ceará, felizmente, tem espaço para o experimental acadêmico, para o filme comercial, para o regional. Você vê aí uma das nossas maiores referências em plena atividade: Rosemberg Cariry, que está fazendo um filmaço sobre Cego Aderaldo; em contrapartida, tem meninos da Vila das Artes investindo no cinema contemporâneo, com filmes lindos. Além dos espiritualistas, que a gente já falou, que emplacam nas salas de cinema.

Pensando sobre o escoamento dessa produção, você não acha que o Ceará tem poucos festivais de cinema?
Talvez. O que eu sei é que temos muitos lugares no Ceará que mereciam um festival, sim. Por exemplo, Quixadá é a nossa Hollywood. O que se filma lá não é brincadeira! Esse é um município que devia ter seu festival. Mas depende muito de como o festival se posiciona, na verdade. A maioria dos que temos são temáticos, com recortes: o Cine Ceará tem um tema diferente todos anos e se tornou um festival ibero-americano, então fica muita coisa de fora; o ForRainbow é temático também; aí tem os de Canoa e Jeri, que são de curtas... Talvez a gente precise de mais festivais e mais formatos, eu diria. Agora, o engasgo da distribuição é mesmo um problema nacional. De repente, se a ministra da Cultura, a Marta Suplicy, desse uma forcinha na modificação do regulamento das salas de cinema, reduzindo a cota de filmes estrangeiros, melhorasse pra gente.

Essa, aliás, é até uma questão que diz respeito ao seu filme, que fala do fim das salas de cinema com o advento da televisão. Faltam salas de cinema no Brasil?
Faltam, sim. Mas não é só isso. Uma vez eu encontrei o Glauber Filho e estava conversando com ele numa palestra, eu disse: "Glauber, quando eu vou no cinema hoje, a sensação que eu tenho é de que eu entro socado e saio tangido!". Sinto falta do cinema como lugar só de cinema, sem ser num shopping, junto com um monte de coisas. No cinema, não tem um lugar pra debater, um café para falar do filme depois. As salas de cinema deixaram de ser espaços rituais. Isso tira a concentração, a capacidade de reflexão do filme. Às vezes, pode parecer teoria da conspiração, mas a sensação que eu tenho é de que não há interesse em deixar o filme nacional fazer plateia. O filme brasileiro geralmente só se torna sucesso de bilheteria como um fenômeno, tem alguma coisa que acontece junto, num contexto social e político, que leva ele a ser um acontecimento. Como eles saem de sala muito rápido, não dá tempo de o filme circular de boca em boca, de crescer ao longo das semanas. Sabia que não há garantia contratual nenhuma de que um filme fique duas semanas em cartaz? Se ele não for um sucesso de bilheteria no primeiro fim de semana, isso sendo nacional, pode dar adeus a ele na outra quinta.

Então o problema não é só a quantidade de salas de cinema, mas a política adotada para gerir as salas.
Falando de números: no Brasil, temos 200 milhões de habitantes e 2,4 mil salas de cinema. Nos Estados Unidos, são 30 mil salas. Dessas 2,4 mil, um filme como "Os Vingadores" toma metade delas e essas que sobraram vão ficar com outros filmes estrangeiros. E não existe nenhuma lei que proíba "Os Vingadores" de querer 100% das salas, sabia? Quer dizer, só resta as cotas de telas, que são pouquíssimas horas, então ele encostaria em 100%. Então, como posso fazer do meu filme uma oportunidade para o investidor privado se eu não vou ter nem chance de posicioná-lo no mercado?

Para finalizar, Halder, quais as perspectivas, próximos trabalhos?
Agora estou rodando nos festivais com "Cine Holliúdy", depois tem "Bate Coração", uma comédia espiritualista que eu vou produzir. Já está com um roteiro pronto. E estou também com um trabalho autoral, um drama chamado "Vermelho Monet" e vou tentando alternar meus trabalhos autorais com comerciais. Estou retomando agora um olhar pra minha carreira. Está difícil ficar pelo Ceará. Com essa demanda de seriados das TVs pagas, vou ficar um pouco pelo Rio e por São Paulo e, talvez, voltar para Los Angeles. Optei por ficar no Ceará e contar nossas histórias e assim é o Rosemberg, o Petrus, tanta gente querendo fazer isso... A sensação é de que estamos seis anos atrasados. Talvez agora com a volta do Paulo Linhares para o Dragão do Mar, ele que entende a importância estratégica do cinema, ele possa iluminar umas cabeças por lá. A gente só quer que haja uma contrapartida justa para tantos realizadores que investem em falar do Ceará.
MAYARA DE ARAÚJOENVIADA A BRASÍLIA

A repórter viajou a convite da produção do Festival de Brasília

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