O Cinema em Cena estreia hoje a coluna Que Cinema é Esse?, que busca discutir quinzenalmente a produção cinematográfica brasileira, incluindo todos os seus processos. Neste espaço, iremos abordar alguns dos principais problemas enfrentados pelos cineastas nacionais, o funcionamento das leis de incentivo, explicar as etapas, discutir o cinema independente, comentar as mudanças no cenário nacional, e muito mais. Para iniciar, apontaremos, a partir de uma entrevista com o diretor Jorge Furtado (foto), alguns pontos importantes sobre a distribuição de filmes no país.
O cineasta (Ilha das Flores, O Homem que Copiava) veio a Belo Horizonte na última semana para o Projeto Cine Aberto, no Cine Humberto Mauro, no qual discutiu o cinema e a política. Tanto na entrevista exclusiva que ele nos concedeu, quanto no debate - ocorrido após a exibição dos filmes Ilha das Flores e Saneamento Básico - Furtado comentou, além da distribuição de filmes nas salas de cinema do país, sobre a importância da diversidade, o circuito de festivais e o download de filmes.
O problema da distribuição
Quando perguntado sobre os principais problemas que os cineastas enfrentam no país, uma das questões abordadas por Furtado foi a má distribuição de longas nas salas de cinema: "Tem os velhos problemas de sempre, o principal deles é dinheiro. Dinheiro pra fazer os filmes, que continua sendo um problema, sempre foi, e continua sendo, de alguma maneira. Tem hoje uma produção boa de quantidade, tipo, uma média de 90 filmes, acho que foi 88 no ano passado, mas acho que está em torno de quase 100 filmes brasileiros por ano. Mas nós estamos em um país com 2000 salas, onde três lançamentos com 500 cópias ocupam 3/4 das salas, então ficam sobrando 500 salas para toda a filmografia mundial, brasileira, e que mais, né? Então, conseguir espaço em uma sala de cinema para exibir o teu filme é uma briga terrível, sempre foi e está cada vez pior, eu acho. Então, esses filmes, esses 100 filmes brasileiros, é interessante fazer uma pesquisa, não sei bem de cabeça assim, mas imagino que pelo menos 80 deles não consigam nem 50 mil espectadores. A imensa maioria é vista por muito pouca gente, porque passam em umas salas alternativas, bem pouco tempo e tal".
Para exemplificar e explicar alguns números citados pelo cineasta, utilizaremos o
Informe Anual de 2010, da Ancine - Agência Nacional de Cinema, responsável pela regulação audiovisual do país - e mais alguns dados do site. Consideramos que 2010 foi um bom ano para o mercado brasileiro, graças, principalmente, ao sucesso do filme
Tropa de Elite 2, que se tornou a maior das bilheterias brasileiras até hoje, levando mais de 11 milhões de pessoas ao cinema.
No Brasil, foram contabilizadas 2206 salas de cinema em 2010 (
Fonte: ANCINE). No relatório anual, constam que das 20 maiores bilheterias do ano no país, 17 são dos EUA e apenas três são nacionais. Todos esses filmes ocuparam mais de 10% das salas disponíveis no país, normalmente por períodos maior que um mês.
Do total dos 303 filmes lançados no circuito de cinemas no país no ano passado, 75 são brasileiros, ou seja, quase 25% das telas foram ocupadas pelo cinema nacional. Na distribuição de público, quase 19% foi para filmes brasileiros, com pouco mais de 25 milhões de pessoas para assistir às produções do país.
Mas dessas 25 milhões de pessoas, 43% foram assistir a Tropa de Elite 2 (Zazen). Outros 30% da fatia foram o público de Nosso Lar (Fox) e Chico Xavier (Sony), somados. Isso significa que quase 3/4 do público dos filmes nacionais deste ano foram destinados a apenas três dos 75 filmes nacionais lançados em grande circuito em 2010.
Os três filmes citados foram os únicos a figurarem entre as 20 maiores bilheterias de 2010 no Brasil (considerando o grande mérito de ter um nacional como nº 1). Somados a Muita Calma Nessa Hora (Europa), foram os únicos quatro longas a levarem mais de 1 milhão de pessoas aos cinemas.
Ao todo, 17 filmes nacionais alcançaram um público maior que 50 mil pessoas. Isso significa que outros 58 filmes nacionais lançados no circuito em 2010 receberam em torno de 528 mil espectadores, isso somando todas as pessoas que assistiram a algum desses títulos. Ou seja, 77% de todos os filmes nacionais lançados em circuito tiveram 2% de todo o público que foi ao cinema prestigiar a produção local - 0,19% do público total do ano.
Com isso não estamos considerando os filmes que não foram para o circuito de salas de cinema (estrearam apenas em festivais, pequenas exibições etc). De acordo com os
números da Revista Cinética, em 2010 foram finalizados e exibidos quase 120 filmes nacionais.
Os problemas da distribuição não estão apenas nas salas de cinema. O mesmo relatório anual da Ancine também mostra que das 52 distribuidoras brasileiras que lançaram algum filme em 2010, oito delas foram responsáveis por 40% dos lançamentos.
Com o objetivo de estimular a produção nacional, o governo mantém atualizado anualmente o Decreto 7.061, mais conhecido como Cota de Tela. Esse decreto prevê o número de dias que um complexo de cinema deve reservar para exibição de filmes nacionais, além da diversidade de títulos -
você pode conferir o quadro de exigências aqui. Mas há muita discussão sobre a lei. Muitas pessoas argumentam que os números destinados não são o suficiente. Os exibidores reclamam o oposto, que a lei traz prejuízos, pois não existe nenhum subsídio por parte do governo, apenas a exigência de que os filmes sejam exibidos, o que não garante que eles terão público (e segundo os exibidores, muitas vezes, não têm).
Além disso, menos de 10% dos municípios brasileiros possuem salas de cinema. De todas as 2206 salas do país, 1640 estão na região Sul-Sudeste (74%), 770 apenas no estado de São Paulo (34%).
Talvez seja por esse motivo que o próprio Furtado, quando perguntado durante o debate se já utilizou o dinheiro das campanhas políticas que sua produtora fez na realização de um filme, disse: "Eu não boto meu dinheiro pra fazer cinema, porque eu não sou maluco (risos)".
As Leis de incentivo resolvem o problema?
A Lei do Audiovisual (por possibilitar mais produções e por isso ter mais material disponível para ir para as salas) e até mesmo o Decreto da Cota de Tela podem incentivar maior exibição dos filmes nacionais nos cinemas?
Mas ao mesmo tempo, passar mais filmes nacionais no cinema garantiria por si só o público? Os exibidores não teriam prejuízo, e com isso teríamos menos salas, ou ingressos mais caros?
Furtado fala um pouco sobre essa questão:
"Eu acho que a lei tem que contemplar essas questões importantes que tu tá levantando aqui. Vamos pensar em voz alta. Digamos que tu diga assim: "Não, esquece lei de incentivo, o mercado se auto-regula", esse é o sonho do mercado, o "deus mercado", se o filme se pagar, tem que dar público e etc... A impressão que dá é que vai virar só blockbuster, comédias ligeiras, porno-soft, auto-ajuda, coisas desse tipo... Para o mercado, esses são os grandes sucessos, então isso é perigoso... Então não, não, vamos fazer assim: "não tem lei de incentivo, o governo arrecada todo o imposto, cria um fundo, fundo pra arte, pra prefeitura, capta esse dinheiro, e um júri escolhe os projetos culturalmente significativos e etc..." Isso faz com que o dono da sala de cinema, que precisa vender pipoca fale: "Por favor não façam isso, senão vamos esvaziar as salas".
Então, o mercado existe, o mercado de exibição é um mercado real. O exibidor se queixa muito dos diretores, às vezes, dizendo: "Vocês já fizeram os filmes, vocês estão pouco se lixando se o filme vai dar público ou não, mas eu não, eu vivo de sala cheia, e é meu negócio, o governo não está me pagando nada, então porque eu tenho que exibir?". Então, não é uma questão simples, ela é complicada, tanto que cada país tem uma: a França tem uma lei, a Espanha tem outra, os Estados Unidos tem outra, cada país tem a sua, a Argentina acabou de fazer uma lei nova exigindo janela pro cinema argentino, enfim... Isso aí é uma coisa dialética, que vai mexendo a cada momento, cada ano muda um pouco, e tem que ter espaço. Tem que ter concursos que garantam estreantes, por exemplo. Essas verbas públicas pro cinema, que vem da Petrobras, Caixa, BNDES, enfim, os grandes financiadores do cinema na verdade têm que contemplar, e já fazem isso que eu saiba, assim, regionalmente, porque são empresas públicas, naturalmente: dar cota pra estreante, garantir espaço para exibição, parte da verba ser destinada à exibição. Porque às vezes o cara gasta todo o dinheiro que tem pra fazer um filme, terminou o filme e não tem dinheiro nem pra fazer o cartaz do filme, que dirá fazer as cópias de lançamento. No cinema americano, hoje o custo de lançamento do filme já é maior que a própria produção, a mídia de lançamento do filme já ultrapassou o custo de produção. Eles lançam marcas em copos do McDonalds pelo mundo inteiro, enfim, isso é um negócio, um grande negócio... Não estou falando que a gente tem que fazer isso, mas a gente tem que garantir que o filme na lata não existe, o filme existe é na tela".
Necessidade da diversidade e das mídias alternativas
Algumas das alternativas que surgem para essa falta (ou má-apropriação) de espaço nas salas de cinema são os festivais - que servem para muitos artistas lançarem seus filmes, muitas vezes como uma vitrine na busca por distribuição - e a distribuição em outras mídias.
Para o diretor, é importante é que haja todos esses tipos de filme:
"Existe um cinema que tem mercado, e que é lucrativo, e que leva muita gente pra sala, esses filmes são quase a maioria deles da Globo Filmes, mas não todos. Tem algumas exceções, de grande sucesso, fora da Globo Filmes. Não acho ruim que isso exista, que exista esse tipo de filme, que lote as salas, faz 3 milhões de espectadores, movimenta a indústria toda, emprega gente, laboratórios, lota salas e tudo mais... Tem que ter isso, e é melhor que seja com filmes brasileiros do que com filmes estrangeiros, eu acho. Drama ou comédia ligeira facilzinha brasileira não é a mesma coisa da americana, pelo menos a brasileira tem mais a ver com a nossa vida. A gente é soterrado por toneladas de bobagens hollywoodianas e as pessoas não se queixam muito porque são meio colonizadas com aquela ideia de que aquela loirinha que é a líder do time de basquete faça sentido... Então é bom que tenha esses filmes, mas é importante que tenha um espaço pra produção de filmes... Não sei se autorais, porque eu acho que esses filmes são autorais, todos eles de alguma maneira têm um autor... Mas filmes de um público menor mesmo. Pra falar de uma obra-prima, como Santiago, de João Moreira Salles. Não estou achando que Santiago vai fazer 6 milhões de espectadores, nem acho que vai acontecer isso, infelizmente, mas o fato de ser visto por 50 mil pessoas, que seja, é importante, porque é um filme importante, um filme que influencia as pessoas, transforma o espectador de alguma maneira, e são filmes que têm que ser feitos. Agora, os cineastas, acho que eles também têm que se profissionalizar, ninguém é autor por um vírus, por alguém dizer, "Agora tu pode fazer o que quiser, tá aqui o dinheiro, vai lá e faz, se vira à vontade". Aquilo tem que ter uma grana, grande parte dinheiro público, tem que ser pensado, tem que ser planejado, acho que é um momento de profissionalização, não é mais um momento para amadores, nesse mercado das telas das salas, eu estou falando. É tempo total para os amadores na internet, em outras mídias... Quanto mais fizerem, melhor".
Furtado no set de Saneamento Básico
fonte:
http://www.cinemaemcena.com.br/Coluna_Detalhe.aspx?ID_COLUNA=379