O cinema de Pernambuco, frágil nos anos 1990, aos poucos assumiu uma posição de destaque no mapa audiovisual brasileiro na década seguinte, impulsionado por cineastas de talento e seus arrojados projetos estéticos. Menos focados no público que colegas cariocas e paulistas e mais comprometidos com uma interpretação pessoal sobre os temas, esses diretores se tornaram referência em qualidade e ousadia.
A assiduidade e os prêmios recentes em festivais atestam que a produção pernambucana segue mais que forte: está quase em estado de graça.
O Festival de Paulínia 2011, por exemplo, consagrou "Febre do Rato", de Cláudio Assis, um dos filmes mais audaciosos e poéticos de todo o cinema brasileiro pós-retomada. No Festival de Gramado deste ano, o Estado é representado por "O Som ao Redor", de Kleber Mendonça Filho, muito elogiado no exterior.
Mas mais expressiva ainda será a participação estadual no Festival de Brasília, em setembro. Metade dos longas em competição é pernambucana: "Boa Sorte, Meu Amor", de Daniel Aragão, "Era uma Vez Eu, Verônica", de Marcelo Gomes, e "Eles Voltam", de Marcelo Lordello. Além disso, documentários e curtas de Pernambuco concorrem em suas respectivas categorias.
"Que meus colegas não me ouçam, mas acho até um exagero escolherem tantos cineastas assim de Pernambuco", diz Assis, 52, antes de dar uma gargalhada, em seu habitual tom polêmico-sarcástico. O diretor é um dos nomes mais envolvidos na defesa do cinema feito no Estado e em discussões políticas que facilitem a produção local.
Graças ao esforço de Assis e outros cineastas de sua geração, as condições produtivas estão bem melhores do que as que eles encontraram ao fazer seus primeiros curtas, nos anos 1980/90.
Mais que isso: o sucesso dos filmes da geração de Assis criou um sentimento de autoconfiança entre diretores mais novos e a crença de que é possível fazer um bom cinema na região.
"Com 'Febre do Rato', quis passar uma mensagem aos jovens diretores: eles podem fazer o que quiserem", diz Assis. Recado dado. A nova geração se destaca por sua forte personalidade própria.
Há grupos distintos na atual cena pernambucana, como lembra Kleber Mendonça Filho, 43. "Houve a primeira grande geração do novo ciclo, com Ferreira, Caldas, Gomes e Assis. Logo em seguida viemos Camilo Cavalcante e eu, diretores hoje na faixa dos 40 anos."
Em seguida, conta o cineasta, veio a turma da produtora Símio Filmes, com Gabriel Mascaro, Marcelo Pedroso, Juliano Dornelles e Daniel Bandeira, diretores que se juntaram há dez anos para fazer vídeo.
"E tem ainda o pessoal da Trincheira [Filmes, produtora], a mais recente geração, com Leonardo Lacca, Marcelo Lordello e Tião. Fora o Daniel Aragão, que não faz parte desses grupos, mas que também está nessa faixa dos 30 anos", comenta.
Todos os diretores se conhecem, e os grupos dialogam. "Há uma troca grande de impressões e uma relação muito saudável de amigos. Às vezes, os filmes até não se parecem entre si, mas as pessoas têm muito a ver umas com as outras", diz Mendonça.
Ele tem razão ao mencionar as diferenças: entre curtas e longas, dramas e comédias, documentários e ficções, filmes urbanos e rurais, o ecletismo é uma das marcas dessa cinematografia.
Claro que existem elementos em comum, como o gosto por imagens de inspiração documental, uma forte atenção à realidade social e a importância dada a espaços regionais. Mas tais elementos indicariam antes um "sotaque pernambucano" que um "movimento". Os diretores não têm, ao menos formalmente, um projeto estético comum. E rejeitam a ideia de "movimento".
"Esteticamente, a única coisa que nos une de fato é a liberdade que temos e a vontade de ser livre quando estamos filmando", diz Daniel Aragão, 31, destaque da novíssima geração.
É uma opinião parecida com a de Marcelo Gomes, 48. "Sou um pernambucano que faz cinema, não faço 'cinema pernambucano'. O artista é do mundo."
O que muitos analistas confundem com "estilo em comum" tem mais a ver com uma filosofia semelhante ao abordar os temas: os cineastas tratam de assuntos universais a partir de personagens e elementos próprios da cultura pernambucana. Ou, simplificando: mostram o mundo visto a partir do Recife - ou do mangue, ou do sertão, dependendo do caso.
Talvez essa seja a chave do sucesso. "É o que diz aquela frase: 'Fala de tua aldeia e falarás com o mundo'. Quem é honesto consigo, com sua cultura, se torna universal. Pessoas de fora entendem piadas que são locais. A força do cinema pernambucano é essa: a gente luta para ter essa honestidade", afirma Assis.
A produção cinematográfica no Estado tem uma trajetória peculiar no cenário brasileiro, alternando épocas de efervescência produtiva com períodos de enormes vazios criativos.
Seu primeiro grande momento foi entre 1923 e 1930, com o chamado "Ciclo do Recife". Na época, 13 longas de ficção e diversos documentários foram produzidos na região, tornando Pernambuco um dos centros da criação audiovisual no Brasil.
O ciclo foi capitaneado pela Aurora-Film, cujos longas uniam estilo e procedimentos hollywoodianos à realidade recifense. Um exemplo é o melodrama "A Filha do Advogado" (1926), de Jota Soares - o filme foi homenageado em "Baile Perfumado", que traz algumas de suas interessantíssimas imagens.
Com o cinema falado, a Aurora faliu, e o ciclo acabou. Veio uma hibernação que durou quatro décadas, até que um novo surto cinematográfico surgiu nos anos 1970: o "Ciclo Super 8", com filmes de baixo orçamento, experimentais, rodados por jovens que investiam em um cinema doméstico. Quase ninguém assistiu a essa produção, mas o ciclo foi uma importante reação ao estado do cinema local até então.
Após novo período agonizante, o cenário voltou a se aquecer nos anos 1990, puxado pela força do manguebeat. Para Rodrigo Carreiro, coordenador do curso de Cinema da UFPE, as pessoas tinham até então uma certa vergonha de assumir uma cultura que era a delas, mas com a qual não se sentiam muito à vontade. "Isso mudou nos anos 1990, quando o manguebeat reforçou a identidade pernambucana e teve enorme influência sobre o cenário cultural", comenta.
O curso existe desde 2009 e foi criado tanto para atender aspirantes a cineastas como para suprir a necessidade do crescente mercado produtor local. "Com o aumento da produção de filmes, houve uma demanda pela formação de mão de obra técnica em áreas como montagem, fotografia e som."
É preciso ressaltar que talentos individuais não foram os únicos responsáveis por esse milagre pernambucano. Além da revolução digital, que ajudou a viabilização dos projetos, a política de incentivos do governo tem sido decisiva nesse processo.
Bem mais que outros Estados, Pernambuco tem demonstrado interesse em investir no cinema local. O Funcultura (Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura) lança editais para projetos em diversas áreas da cultura, mas desde 2007 destina uma soma expressiva só para a produção audiovisual.
E o investimento tem crescido a cada ano: enquanto o edital de 2007 destinou R$ 2,1 milhões para a área, o mais recente liberou R$ 11,5 milhões. Não por acaso, o Estado foi o quarto maior produtor de longas no país em 2011, atrás de Rio, São Paulo e Bahia.
"Os filmes de Pernambuco tiveram muita visibilidade nos últimos anos e fizeram sucesso em festivais. As entidades culturais [do governo estadual] viram que estava dando retorno. Era natural que aumentassem a verba", diz Marcelo Gomes.
Daniel Aragão reconhece as dificuldades que teria sem o fundo. "Se não fosse a política atual do Estado para o cinema, eu iria demorar pelo menos mais três anos para realizar esse filme. É fato."
Até o fim do ano, devem estrear outros filmes produzidos no Estado, como "Tatuagem", de Hilton Lacerda, e "O País do Desejo", de Paulo Caldas. Uma base de dados está sendo produzida só sobre a produção local (www.cinemapernambucano.com.br).
A boa fase do cinema pernambucano não deve terminar tão cedo. Como observa Kleber Mendonça: "Tem alguma coisa especial acontecendo nessa cidade chamada Recife. Estamos em uma época de ouro".
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